sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Olhar sem muralhas


Gosto de olhar o fundo
de todos os olhos


é que eles assim são alegres


e os meus podem servir de espelhos
para quem quizer saber
o redondo dos seus
para quem quizer rir-se
nos meus olhos


não importa que eu não recorde
nem recordem
as cores de todas as irís


gosto de olhar para além das muralhas
e dos sorrisos
gosto de ler no fundo das lágrimas
que não correram
e saber quem as vai soltar


porquê
para quê


e voltar a sorrir
sem persianas na menina dos olhos

Libertado


O sol já não queima
na pele áspera
que já queimou

agora
beija
nos braços da ceifeira
que amou

a espiga brilha
cantada
no barro do chão
na madrugada
da terra lavrada

no pó da eira
movimentada
o sol não queima
agora beija
a cara torrada
a debulhada
o corpo suado
curvado
mas não rebaixado
do antigo criado
libertado

O fim é nunca


Se tudo neste mundo
tem um fim
se o fim da vida
é nada
é a morte
é uma estátua de terra
o fim deste dia
é nunca
e o pôr-do-sol
é amanhã
o fim desta noite
é a luz e a aurora
o fim do mar
é gota de água numa ilha deserta
e o fim da lua é um espelho
noutro dia
o fim da realidade 
é outro sonho
o fim da carne é sangue
é o amor
o fim da eternidade e do princípio
é o momento
e o fim dum anel
é nunca

LEMBRA-TE


Lembra-te do vento que passa
sem ser furacão
do insecto levando a fecundação
a uma flor distante

Lembra-te da guerra
sem maldição
sem armas
sem mortos
num beijo dado ao teu irmão

mas

revolta-te

antes dos abutres descerem e afugentarem a tua verdade


Lembra-te de negar o teu corpo
ao sacrifício dos deuses
e
oferece a tua carne
à carícia dos infelizes
que não sejam canibais

Lembra-te de um dia
que não existiu porque era belo
e que a eternidade habita debaixo da terra

e que as crianças são barro por moldar

sem máscaras na cara
nem pedras no peito

Lembra-te

de dizer o nome de um homem
não o de um deus

de manhã ao despertares

Descobri que


nunca tinha pensado
que era também
um fóssil

pedaços

e restos dum horizonte
de dia de sol de outro dia
arrastados e lançados
no futuro

como passado concentrado

e séculos de fogo


que era também
cinzas de magmas
resina de mitos
e lixo de carne de heróis e cobardes
de outras guerras

que era também
meteorização e síntese
da cal da morte        continuada

que mistura
de restos de outros

eu sou

talvez

soluto de sal de tudo e de nada

Louca poesia


Eu sou louco

louca é a vida
e a verdade

tudo é louco
mouco
oco
mas não rouco

louco é o destino
e a justiça
por te escolher
para sofrer
louco
mouco
mas não rouco
por te querer
a viver

louco o amor
por não ver
cego
louco
mouco
mas não rouco
nem oco
por te querer
a amar

louca a vida e a verdade
surdo o destino e a justiça
cego o amor e a revolução

loucos eu
tu
os pobres os famintos e os órfãos

loucos
moucos
mas não roucos
nem ocos

VOZES


As vozes calam

na morte

paralizam os sons
das cordas vocais
cansadas
apodrecidas
de falar em vão

só lhes resiste
o amor
  a justiça
     e a verdade

LEILÃO


Pregão estranho
aquele
noutro dia

ao preço da melhor oferta
vendiam-se mobílias velhas
mas de estilo
e consciências usadas

ao desbarato

nos vistos hábitos da bolsa
e dos leilões

arrematam-se por conveniências

compram-se
vendem-se
usos de consciências

já poídas
mas de puro sangue

também lá havia prostitutas
meio nuas
a preços mais baixos que nas ruas

não comprei nem vendi
não tinha preço
mas vi consciências do melhor estilo
também nuas
oscilando dum lado ao outro

ao sabor do comprador
da sua cor
e das andanças

compraram-se
venderam-se

até que novo leilão as apregoe